terça-feira, 9 de setembro de 2008

. recordações da casa dos mortos .





Fragmentos


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... Ao escurecer éramos fechados em nossos alojamentos. Que coisa insuportável sair ao ar livre, entrar numa caserna onde candeias de estearina bruxuleiam num cômodo baixo e comprido com um bafio nauseabundo. Hoje me parece incrível haver lá passado dez anos! Na espécie de beliche alongado onde dormíamos em comum trinta detentos, todo o meu espaço se restringia a três tábuas.

Suponho benevolamente que naquele alojamento se achava um espécime de cada crime possível na humanidade. A maioria dos detentos era convicta de crimes da alçada civil. Tais homens, já agora privados definitivamente da cidadania, tinham o rosto marcado com ferro em brasa, estigma indelével da ignomínia. Permaneciam de oito a dez anos reclusos, sendo em seguida mandados como leva de colonos para qualquer região inóspita da Sibéria. Havia gente ainda convicta de crimes da alçada militar; mas, segundo dispositivo correcional, conservavam sua categoria de cidadãos e, se condenados por pequeno prazo, regressavam ao respectivo posto, mas num batalhão da Sibéria, uma vez cumprida a pena. Alguns dentre estes faziam nova entrada no presídio, mas já agora devido a atos mais graves, para uma estada de vinte anos! Aboletavam-se na seção dos “reincidentes”, perdendo então os direitos da cidadania...

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... Freqüentemente imperavam os roubos. Quase todo detento possuía sua mala fechada com os objetos permitidos pela administração; mas as malas não apresentavam a menor segurança, ainda mais havendo lá artistas exímios em arrombamentos. Um companheiro que me era muito servil e serviçal (não o critico) roubou o único objeto cujo uso me fora permitido: uma Bíblia...

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Ao fim do dia, quando após o trabalho da tarde voltei exausto para o presídio, se apoderou de mim uma angústia inenarrável. E meditava: “Quantos milhares de dias iguais a este tenho ainda diante de mim, imutáveis, igualíssimos!” E enquanto assim refletia, indo vindo atrás das casernas naquela hora de um crepúsculo lúgubre, eis que correu para mim Charik, o nosso cão do presídio, como os há de batalhão. Desde tempos imemoriais vivia ali, ninguém cuidando dele, cuidando pertencer ao primeiro ou ao último de todos nós, mas por todos ignorado, fuçando os sobejos das cozinhas. Era um cão comum, mas grande, preto, com manchas brancas, um destes cães de guarda degradados, não muito velho, com olhos inteligentes e cauda espessa. Como já não me via desde algum tempo, veio a mim porque desde muitos anos eu fora o único detento que lhe demonstrara afeto...

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... Só me lembro deveras que em todos aqueles anos, os dias eram uns parecidos com os outros, deles emanando tédio e desgosto. Parece-me que aqueles dias tão longos e monótonos mais não foram senão pingos d’água escorrendo de um beiral em época de chuvas. Só sei de uma coisa: do veemente anelo de ressurreição, do desejo ardente de uma vida nova, único sentimento que me fortalecia e que me dava forças e fé para esperar. E eu réstia, afinal; contava, esperava cada novo dia e, quando ainda me faltavam mil, via desaparecer esse e com júbilo me dizia que já agora só restavam novecentos e noventa e nove, pois enterrara o anterior e me enternecia com o despontar do seguinte. Recordo que em todo aquele tempo, não obstante ter uns cem companheiros, me sentia tremendamente só e que todavia acabei por querer bem aquela solidão. Só com a minha alma, considerava toda a minha vida de antes, analisava-a até os mínimos pormenores e condenava tudo quanto fizera no passado transformando-me no meu próprio juiz severo e inquebrantável...

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... Na manhã seguinte, mal despontou o dia, percorri as casernas a fim de me despedir de todos antes que saíssem para o trabalho. Muitas mãos calosas e robustas se estenderam cordialmente para mim. Alguns apertaram a minha mão como amigos; outros apressadamente. Os outros sabiam muito bem que eu em breve iria me tornar um outro homem, que tinha conhecidos na cidade, gente de situação onde me sentiria de igual para igual. Eis porque a maior parte se despedia de mim não só amistosamente como também com enternecimento, mas não como de um camarada e sim de um barine. Alguns, contudo, se viraram, não respondendo absolutamente à minha despedida, sendo até que um ou outro me olhou de esguelha, com rancor.

O tambor rufou e todos saíram para o trabalho. Permaneci no alojamento. Suchilov se levantara antes de todos para me preparar antecipadamente um chá. Pobre Suchilov! Pôs-se a chorar quando lhe dei meu enxoval de detento – umas duas camisas, as correias de forrar as algemas e mais algumas coisas. “Não me conformo, não me conformo... Que falta vou sentir do meu amigo Alexandr Petrovich!... Como posso ficar aqui sozinho?” Por último me despedi de Akim Akimitch dizendo-lhe depois:
- Você também não demorará a sair!
- Ainda tenho que permanecer muito, muito tempo – murmurou ele, apertando minha mão. Abracei-o e nos beijamos.
Dez minutos depois da partida dos detentos para o trabalho, deixei o presídio, para nunca mais voltar. Saiu comigo um companheiro com quem eu entrara ao mesmo tempo. Antes de mais nada nos dirigimos ao ferreiro para que nos tirasse as correntes. Não nos acompanhava nenhum guarda e sim um suboficial. A abertura das algemas estava a cargo dos detentos da seção técnica. Esperei que o meu companheiro fosse libertado das cadeias, depois me aproximei da bigorna. Os ferreiros voltaram-me as costas para eles, levantaram o meu pé por detrás e o depuseram sobre a bigorna... Agiram depressa, visivelmente afoitos, esforçando-se por terminar sua tarefa com prestimosidade.
- Primeiro que tudo vire a ponta... Vire a ponta para cima, - ordenou o outro, mais velho. – Chega, está bem... Agora bata com o malho. Solte com uma pancada só!...
Os grilhões caíram no chão. Ergui-os... Quis segurá-los, olhá-los bem, ainda uma vez. Perplexo, não podia acreditar que não estivessem mais nos meus tornozelos.
- E agora... vão com Deus... Com Deus! – disseram os detentos com voz embargada, rude, mas onde havia um ressôo de contentamento.
Sim, com Deus! Liberdade, vida nova, ressurreição dentre os mortos... Que inefável momento!

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